sexta-feira, 24 de julho de 2009

A Quadrilha no Santa Lúcia

Marcelo Micke Doti

Todo mês de junho e na sua continuidade, julho, ocorrem as festas juninas e hoje já denominadas também “julinas” (que não tem relação alguma com uma pretensa celebração à Júlio Cesar). Este fato é interessante. Como no mês de julho são as férias escolares, então as festas acabam se arrastando para este mês. Originalmente, no campo, nos espaços agrícolas, a “roça” com falado pelo linguajar daqueles que vivem este espaço diferenciado, as festas eram dias santificados e, portanto, feriado. “Guardava-se” o dia. No entanto, o Brasil modernizou-se, tornou-se industrial e urbano e não mais é possível “guardar” o dia santo. Ótimo para o príncipe dos sociólogos que constantemente contrapunha o Brasil do atraso, arcaico, ao Brasil moderno. Por esse expediente o referido também falava das classes e dos espaços do país: o país do atraso e da modernidade. Não existem classes, apenas forças sociais envolvidas no bem-estar (e este é a modernidade, claro!). Assim, encurtando o “causo”, acaba ficando muito mais fácil e prático que seja em julho. O prático aqui com forte conotação bastante bem determinada: não atrapalhar do trabalho vendido ao capital.

Santa Lúcia é um bairro periférico em Araraquara. Às vezes é difícil falar em periferia em uma cidade de médio porte. No entanto, como estas são aquelas de maior potencial de crescimento no mundo atual (deslocamento e desconcentração industrial mais fáceis devidos aos “incentivos produtivos” ao capital), devemos esclarecer a localização de suas partes constitutivas. Mesmo porque cada parte do espaço representa uma parte da sociedade e, no caso do Santa Lúcia, vemos claramente através de suas casas e de sua ruas a sua estrutura social. Essa é a segregação espacial como fenômeno geográfico-social. A estrutura social desse bairro é muito clara: trabalhadores dos mais diversos labores e salários e, em sua grande maioria, vivendo e sobrevivendo para serem pequeno-burgueses. Sonho consumista de todo estrato trabalhador especialmente no pós-64.

No dia 11 de julho ocorreu, então, uma das referidas festas “julinas”. E muito longe realmente de uma celebração pagã a Júlio Cesar. Além do quentão, do vinho quente, dos doces, pescaria, música, também teve o hasteamento do mastro de Santo Antônio com o padre e tudo e que em nada combinaria com o imperador. Mas também teve o inevitável e indispensável em todas essas festas: a quadrilha. E também como inevitável – festa dupla – pois as crianças vão dançar.

A noiva e o noivo sempre na frente e depois toda a quadrilha atrás. E realizam os mesmos passos de sempre, com as músicas caipiras típicas, ao estilo do que se dançava na tuia e o condutor da quadrilha dando os passos. Algo parece ligar toda essa gente, crianças e pais orgulhosos dos filhos, a um Brasil arcaico (horror para o nosso príncipe), mais antigo, menos desenvolvido, mas talvez mais autêntico, mais soberano. Algum fio de história parece conduzir toda essa gente e seus comes e bebes para outro Brasil. A celebração tem esse poder e essa força: arrancarmo-nos da cotidianidade, do mundo plasmado e nos levar para um eterno que está longe do presente. É a catarse coletiva. Poder-se-ía dizer uma bacante ou dionisíaca esta festa e sua dança e música? Não, em definitivo não é o que acontece aqui.

No estacionamento víamos os carros simples de trabalhadores naquele estrato referido e em busca do melhor, ou seja, a ascensão social. Mas o melhor estava lá dentro, no galpão de festas da Igreja: a dança. Talvez a quadrilha pudesse ser a síntese catártica que ainda pudesse levar a uma identificação mais íntima e popular, com aspirações diferentes de uma vida mais autêntica, forjada para longe das ambições do mercado. Não, também. Nos pés das crianças todas as marcas possíveis de tênis: Nike, Reebok, Adidas, etc. O noivo com um colete com inscrições em inglês. E o tradicional chapéu caipira, de palha, desfiado e amarfanhado, substituído, em muitos, por um belo chapéu texano. A dança não significava catarse e busca de uma autenticidade, mas tão somente uma festa de fim de semana, descaracterizada, mistura eclética de traços e elementos culturais. Elementos que poderiam, ainda que misturados, sintonizar para a catarse. Não é esse o caso. São elementos a sintonizar para um “estilo” de vida totalmente dependente, na economia deste estilo, como na sua psicologia e na sua cultura. Essas crianças, ali postas a representar algo que quase já não existe, morto, serão jovens trabalhadores, lutando para sobrevier e poder comprar a catarse no mercado. É mais fácil.
É evidente que um processo econômico de grande envergadura transforma a cultura e a sociedade. É o caso da urbanização-industrialização do Brasil, um dos mais violentos processos desse tipo no mundo. Violento em todos os sentidos da palavra: na carne e na alma, nos corpos e músculos das pessoas e na sua cultura. Não se pode exigir a volta como um alemão romântico do início do século XIX querendo seu castelo e sua medievalidade. No entanto, é neste ponto que surge o potencial da teoria: chamar à consciência o processo, descobrir o acontecido, identificar o destruído e conectar com o moderno escolhido, não o moderno a nós impingido. À teoria cabe um dos maiores papéis possíveis aqui: resgatar o perdido diante do realizado e reviver aquele. Uma antropofagia no melhor estilo para a libertação e emancipação. Posta, no entanto, na forma de uma festa tão anti-catártica, que não transcende o cotidiano para buscar um fundo de Brasil autêntico, só se pode dizer que a mesma é totalmente moderna (neste caso o melhor é pós-moderna, dada a mistura de elementos, o pastiche) e orgulho para nosso príncipe.