sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Copa de 1994, o Brasil, o pragmatismo e o Mercado

Marcelo Micke Doti

Sendo a principal função dos cientistas da história acompanhar seu percurso e suas artimanhas, nada melhor do que conectar fios da realidade em seus múltiplos níveis. Fazer as teorias universais em conceitos largos, também requer a histórica do cotidiano, seus conceitos subsidiários, menores, “rodapés da história”, mas que ajudam a construir o grande “romance universal”. Somente por meio destas múltiplas, intrincadas e transversais conexões e determinações escapamos – ou ao menos tentamos escapar – da falácia, armadilha ou artimanha do conceito. O que é isso? Generalizar, conformar uma realidade por meio do conceito – que é linguagem sobre a realidade – sem que o mesmo realmente explique. Em outra forma: tornar subjetiva a objetividade invertendo a fórmula de todo materialismo (inclusive o marxista): a realidade, a objetividade (realidade e objetividade são diferentes em Kant, mas isso não nos importa), é sempre maior e mais complexa do que a subjetividade e o pensar que apreendem pelos conceitos parte daquela. A inoperância inadequada dos mesmos leva a grandes desastres teóricos, senão práticos. Exemplar nisso o stalinismo, assim como a revolução burguesa no Brasil que não redundaria em golpe (como acreditava o PCB), a II Internacional e seu caminho pela economia e a crise “natural” do capitalismo e tantos outros conceitos que conformaram nossas lutas.

Fazer as crônicas da história, seus “rodapés”, conectando fios e determinações também é a etapa da construção do conceito. Por meio de personagens menos importantes podemos construir o grande romance histórico e sua teoria. Neste universo da crônica e da cultura do cotidiano construímos os elos que nos levam mais distante, mais além e nos fazem ver com olhos mais fortes para longe da platitude do real: vemos para a totalidade como construção histórica, social e intelectual.

Em 1982 e depois em 1986 a seleção brasileira jogava futebol dos mais belos que se poderia ver. Muitos críticos chegavam a comparar o mesmo ao da seleção de 1970 (montada por Saldanha, mas dirigida depois por Zagalo: era a mão grande da ditadura no cotidiano do conceito) e alguns ainda a lhe dizer superior. Nessa época aquele futebol vinha a coincidir com processos históricos nestas paragens deveras interessantes: as greves do ABC e o surgimento de novas lideranças (aquele metalúrgico de um novo sindicalismo e o que veio depois agora não importa), o processo de anistia (e seus problemas até hoje existentes), as eleições de 1982 para os governos dos estados com a vitória da oposição nos estados centrais (oposição, à época, na figura do PMDB).

Mas em um movimento crescente aquele futebol levou a uma astuta e sagaz jogada (em amplo sentido da palavra): a democracia corintiana. Além do futebol e do toque de bola de encher os olhos de Casagrande e Sócrates, os cartazes e faixas falando em “democracia corintiana” levava mais longe: era um espaço insuspeito nas televisões com a palavra democracia. Tática muito sábia naquele momento. Na verdade, ao se falar de democracia no time, usava-se a palavra como imagem e as televisões não poderiam deixar de mostrar essa imagem.

Neste mesmo caminho construíam-se expressões musicais como o rock nacional em novo patamar. Diferente da jovem guarda dos anos 1960 e 1970 e suas músicas cheias de elementos insossos e de cultura copiada, com suas muitas versões, nos anos 1980 surgiam grupos com músicas a expor e colocar jovens à parte dos problemas nacionais. Músicos como Chico Buarque, Gonzaguinha, etc. já faziam isso. No entanto o diferencial aqui era outro: o rock era incorporado como possibilidade de mostrar as realidades do país seus problemas. Quem não consegue perceber isso ao ouvir Faroeste Caboclo?

Em 17 de julho de 1994 a seleção brasileira ganhava a copa do mundo nos Estados Unidos. Nada mais sintomático em amplos sentidos. Aliás, esse é o mais maravilhoso do mundo da cultura: está repleto de significados, símbolos, imagens. A vitória de 1994 nos Estados Unidos, após 24 anos sem um título mundial de seleções, consagrou o pragmatismo na própria nação do pragmatismo. Consagrou o mercado na nação da livre empresa. Neste momento o futebol brasileiro não foi mais o mesmo, porque a cultura não era mais a mesma. Neste mesmo ano fomos inundados pelas vitórias do Plano Real e pelos importados e as delícias de consumo das classes sociais presas ao mercado. Provavelmente em momento algum da cultura brasileira sua extorsão nativa foi tão grande. Lembro-me nesta época de começar a dar aula e poucos alunos entenderem o conceito de mercado... Quantas diferenças...

Poder-se-ía, de maneira agradável e deliciosamente, prolongar essa crônica para abordar a marginalidade cultural desses anos. Falar da consagração das mais nefastas expressões musicais como axé music, o sertanejo com cara de música do oeste americano e seus festivais de peão com chapéu de texano e os detestáveis pagodes e seus instrumentos elétricos acabando com o samba, mas todos muito “antenados” ao mercado. Poderíamos falar de jogadores brasileiros, como o Júnior de 1982, que não ficaram na Europa por não se adaptar e aqueles que hoje jogam na seleção e já têm sotaque de seus novos países: pudera, já forma postos no mercado com seus 17 ou 18 anos. Porém é mais fácil ver que em 1994 a vitória do futebol representou um novo tipo de paradigma no Brasil: a eficiência do mercado e o pragmatismo de tudo, da universidade às artes. A vitória naquele 17 de julho significou a derrota de uma nação autêntica. Por caminhos os mais estranhos e insuspeitos, mais uma vez a ditadura ganhou e, calados, vemos o “sinal fechado para nós que somos jovens”. Abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua tem que ter um preço.