sábado, 1 de agosto de 2009

O PT e a profecia de Golbery

Marcelo Micke Doti

A estrutura política da qual o Partido dos Trabalhadores (PT) passou a fazer parte na forma como profetizou Golbery[1] significa a também a forma pela qual o mesmo está distante dos projetos emancipacionistas. E não poderia ser diferente em função de vários motivos e muitas determinações. Assim o que se tem a fazer para entender todo o processo político, social e econômico aqui em jogo é buscar os muitos determinantes históricos (quase infinitos) da própria história do desenvolvimento econômico do país como da constituição da política da modernidade, nas palavras do príncipe dos sociólogos.

Evidente que a busca de todo o processo de desenvolvimento na forma de totalidade articulada requer muito mais do que um artigo. Precisa-se de muitos estudos parciais que depois se vão a completar na forma de totalidade articulada. Em sentido metodológico (tanto de pesquisa como de exposição nas palavras e ideias de Marx do posfácio à 2ª edição de O Capital) significa constituir estudos de síntese de totalidades crescentes e cada vez mais integradas até chegar em uma totalidade que tem vida por si só. Neste ponto o pensado se aproxima quase perfeitamente do concreto e a exposição pareceria uma construção a priori, pois muito complexa como a realidade. É quase como se estivesse a ler um romance no qual o autor, soberano e absoluto sobre seus personagens, decide a totalidade da vida e da morte, dos destinos e dos sofrimentos. Esta metodologia é aquela referida por Marx.

No entanto as questões metodológicas aqui não nos importam muito, a não ser como fundo no qual se procura fazer a busca histórica, ou seja, seguir cautelosamente os conceitos e suas possíveis articulações e mesmo deixar alguns em suspenso, em uma espécie de limbo. Dali ele sairá, sem dúvida, mas tão somente quando já puder estar integrado com outros que decidam a construção da totalidade. Um desses conceitos para se ficar no limbo da espera totalizante seria (e é) entender o próprio processo de formação histórica do PT e seus grupos formadores. A partir desse processo poderia se verificar até que ponto o partido teve (ou tem?) uma trajetória socialista e emancipacionista. Muito provavelmente a resposta é de uma negativa muito tortuosa. Tortuosa por parecer que avançava como a história do desenvolvimento e da modernização do Brasil o faz e fez. Parceria que o PT tem todos os determinantes para se colocar como esquerda emancipacionista. Porém percebemos o processo de reversão e de coadunação própria com o mesmo desenvolvimento na forma de formação de amplos mercados internos. Aliás, isso constitui um dos orgulhos atuais para o desenvolvimento capitalista do país.[2]

Parte dessa trajetória acima referida poderia ser percebida ou mesmo – em linguagem que metaforiza a subjetividade – “sentida” em entrevistas do próprio Luiz Inácio quando referia desprezo à teoria. Não é uma questão de aqui articular um conjunto de ideias entre linguagem e política, ou melhor, entre o uso da palavra e como a mesma expressa conceitos sociais e políticos (neste caso muito mais do que qualquer interpretação “psicologizante” e errônea de muita explicação dos fatos sociais), mas esse desprezo é sintoma político sim e em ampla medida. Por quê? Porque a busca de todo processo emancipacionista exige profunda formulação teórica no entendimento do movimento do real. No caso do Brasil, da forma de seus desenvolvimentos histórico e político. Trata-se de elevar ao concreto pensado o próprio concreto. Tarefa teórica altamente complexa, profunda, sofisticada e totalizante. E em hipótese alguma se tem aqui qualquer preconceito baixo e pequeno burguês de associar Luiz Inácio e sua formação (isso requer outro artigo oportuno sobre um determinante esquecido por alguns na opção política para 2010: o preconceito). Apenas tem-se que declarações desse tipo resumem o caminho que já viria ser traçado pelo PT. Talvez sintomático disso (e como acima referido, as palavras, a linguagem, muito além de qualquer psicologia de verificação do ego e sim como o próprio em nós que liga mais profundamente do que se imagina o indivíduo à sociedade) seja uma frase de Luiz Inácio na campanha de 1989 sobre o direito de comer macarrão com frango aos domingos para todos. Isso não se transmudaria hoje de uma necessidade básica (comida, direito humano) em geladeiras, fogões, DVDs e eletro-eletrônicos cada vez mais sofisticados (consumo crescentemente “aburguesado”)?

Dentro do processo de entender a história do PT estaria também a forma como grupos mais radicais forma sendo excluídos. Desde o PSOL mais novo nesse processo de exclusão e de longe o menos radical (veja-se seu estatuto e sua revolução pequeno burguesa) até PSTU (antiga Convergência), etc. Não se tem aqui a intenção de buscar toda a história de constituição do mesmo e como essa história é a própria história de formação da elite atual. Apenas levanta-se uma questão ao mesmo tempo essencial e histórica como também metodológica no sentido da composição da totalidade.

No entanto todo esse processo se reverte em outro ponto que cumpre a profecia. O processo de distanciamento de um possível e antigo discurso mais emancipacionista para a conformação com a realidade: a hegeliana “reconciliação com a realidade” (que Löwy usa na sua Sociologia dos Intelectuais Revolucionários para falar do abraço de Lukács com Stalin). A pergunta é: havia algum projeto nesse sentido? A resposta a isso requer a pesquisa acima e novamente uma tortuosa negativa no sentido de que esse projeto nunca existiu, a não ser para alguns grupos minoritários.

Neste ponto pode-se verificar que a história interna referida anteriormente é importante, mas também como referido, parte da totalidade, pedaço da construção da totalidade. Por quê? Neste caso não por ser uma peça que se encaixa com outras. Se assim o fosse a totalidade seria um quebra-cabeças de soma e não de articulação crescente (na qual 1 + 1 > 2, como nas palavras de Beto Guedes em Sal da Terra). Pedaço da totalidade, pois a história interna seria uma luta encarniçada para se chegar ao poder de Estado desde que reconciliado com a realidade. A guerra e as vítimas, o campo de batalha plasmado e empapado de sangue era o duro caminho a ser percorrido pela história interna do partido para que viesse a se constituir como partido da ordem. Por esse modo o PT afastou-se cada vez mais de qualquer projeto emancipacionista, mas não das aspirações populares. Isso é outra história e quanto a essa seu projeto é perfeito e totalmente integrado. As aspirações populares são simples e algo muito diretas. O PT metamorfoseado que atende a essas aspirações simples é resultado de todo o processo de sua constituição interna em confronto com a realidade externa com a qual teve que se haver. Processo esse de formação de elite representativa de uma classe (a pequena e a alta burguesias, especialmente a financeira). A síntese para se entender o atual partido da ordem é, então, entender como o mesmo transformou-se em elite de uma classe.

Este conceito final é fundamental uma vez que a análise de classes da sociedade quando em confronto com a realidade política e da reprodução da sociedade como totalidade precisa do conceito de elite da classe. O motivo para isso é o próprio processo de formação da realidade social. Esta só existe através de mediações, caso contrário cada determinante levaria a outro na forma de um mecanismo semelhante ao materialismo mecanicista. Da mesma forma o processo de análise de classes e partidos. Os partidos políticos ordinários (no sentido de ordem!) através dos processos legais e institucionais da Realpolitik formam-se como elites representantes de uma classe: não existe um espelho de reflexo perfeito entre a classe e o partido. Isso seria a ideia da infra-estrutura refletindo-se perfeitamente na superestrutura de forma mecânica. Cairíamos em um processo de materialismo mecanicista através de uma volta que parceria negar o mesmo. Somente entenderemos perfeitamente a profecia de Golbery se compreenderemos como o PT se fez a si mesmo e ao mesmo tempo foi arrastado pela história do nosso desenvolvimento socioeconômico para ser uma elite.


[1] Ver o artigo de José de Souza Martins, “E o general Golbery, afinal, não se enganou”, no Estados de São Paulo, 20 de julho de 2009, suplemento Aliás.

[2] Ver reportagem da Folha de São Paulo do dia 28 de julho de 2009, “Recessão no Brasil acabou em maio, avaliam bancos” na qual se mostra o poder do mercado interno no processo de sustentação do consumo e como motor da expansão econômica do país.