terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O TERCEIRO SETOR E O EFEITO CURATIVO: BREVE REFLEXÃO

FELIPE LUIS GOMES

Além do Estado (“Primeiro Setor”) e do mercado (Segundo Setor) há, segundo alguns pesquisadores, um “Terceiro Setor”. O que é “Terceiro Setor”?
A noção “Terceiro Setor”, “é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa (Third Sector) (FERNANDES, 1977, p.28). Segundo COELHO (2000) foi usada pela primeira vez por pesquisadores estadunidenses, na década de 1970. Esta noção, que pretende definir um fenômeno social complexo, exige dos estudiosos uma leitura atenta e cuidadosa. Como sabemos, qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade e essa realidade pode manifestar - se de formas variadas, ou seja, depende muito do contexto social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997).
O pesquisador R.C. Fernandes assim demarca as fronteiras entre o “Primeiro, Segundo e Terceiro Setores”:
AGENTES FINS SETOR
Privados Para Privados Mercado (segundo setor)
Públicos Para Públicos Estado (primeiro setor)
Privados Para Públicos Terceiro Setor
Públicos Para Privados (corrupção)
(Fernandes, 1994:21).
Como podemos observar é fácil perceber que, definido pelos seus fins, o denominado “Terceiro Setor” é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e /ou públicos.
Desta forma, há uma clara coincidência com os objetivos do Estado, que, para determinada concepção, é uma instituição voltada, necessariamente, para os interesses universais, o bem estar público.
O “Segundo Setor” é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros.
Quando os atores que participam (gestores, senadores, deputados, vereadores, funcionários) do “Primeiro Setor” não separam os interesses públicos dos privados o Estado pode ser entendido como neopatrimonialista. Dito de outra forma, o clientelismo, o nepotismo, o personalismo, a “política de favores” e a cordialidade são condutas que integram uma determinada “racionalidade burocrática” historicamente construída.
Para FERNANDES (1994, p.21), “terceiro setor denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. ‘Bens e serviços públicos’, neste caso, implicam uma dupla qualificação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivismo conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos, {e ainda mais} as variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação.” (FERNANDES, 1995, p.32).
Como exemplos de instituições que pertencem ao “T.S.” podemos citar: a Fundação Abrinq (S.Paulo), a Anistia Internacional, a ONG “Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente” (Salvador), o Orfanato Renascer em Araraquara, e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que competem entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias com o Estado e com as empresas do mercado solidário. Logo, dada esta diversidade de instituições e de objetivos a noção é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos acima, resulta de seu “caráter eminentemente ideológico”; ideológico no sentido de ocultar da realidade concreta, as raízes das desigualdades sociais que se apresentam na América Latina e Caribe de uma forma perversa.
De acordo com Oliveira (1995, p.7), as Organizações Não-Governamentais (ONGs), por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".
Indagamos: quantas, de fato, superam o assistencialismo e realizam os direitos sociais e econômicos? Como é sabido muitas organizações, ao prestarem serviços público, têm, na realidade, substituído funções inerentes ao Estado Republicano. “A direita faz de conta que despreza o Estado, como coloca Chomsky: proteção estatal e subsídio público para os ricos; disciplina de mercado para os pobres. O ataque neoliberal ao Estado esconde, como regra, a preocupação de recuperar o Estado para o capital, já que, o welfare state, teria se voltado exageradamente para os interesses sociais, mormente sob o impulso da sociedade mais bem organizada (sindicatos, partidos social-democratas, organizações civil etc.) (DEMO, 2001).
Ressaltemos que para Fernandes (1994) o “Terceiro Setor” não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar. É fruto das insuficiências e dos limites da atuação do Estado e do mercado. Mas, como sabemos independente da vontade e das boas ações humanas, o denominado “T.S.” tem, na realidade, crescido como efeito das perversas políticas neoliberais que, de fato, desobrigam o Estado da sua função pública. Com a “crise” do Estado de Bem Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do “Terceiro Setor.” passa a ser funcional/operacional ao capitalismo “neoliberal”, ocultando, desta forma, as raízes estruturais do desemprego, da precarização do trabalho, da pobreza e da miséria (MONTÃNO, 2002).
Em resumo, sendo o crescimento do denominado “Terceiro Setor” fruto da modernidade, do progresso técnico e da ampliação do exército de reserva é um efeito da própria natureza do modo de produção capitalista, da dinâmica da economia competitiva/monopolista de mercado que opera sob um regime de acumulação predominantemente financeiro. Portanto, o pauperismo e a indigência (superpopulação relativa excedente) somente serão superadas com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação do capital, do desenvolvimento das forças destrutivas do ser humano e da natureza. O assistencialismo e a "cidadania menor" (DEMO, 2001), práticas inerentes ao chamado “Terceiro Setor” e às políticas pseudoliberais (SARTRE, 1987, p.37), talvez possam, por algum tempo, “animar” parte da sociedade, e amenizar, parcialmente, o sofrimento humano, o que KURZ (1997) chama, apropriadamente, de simples efeito curativo. Sabemos que, nem como efeito curativo, tem sido tão eficiente a ação do “Terceiro Setor” nos Estados Unidos da América do Norte, seus “lócus” privilegiado (PETRAS, 1996, 1999).
Referências Bibliográficas:
Bakhtin, M Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo Hucitec, 1997.
Coelho, S. Terceiro Setor: Um estudo comparado entre o Brasil e os Estados Unidos. São Paulo:
SENAC, 2000.
Demo, P. Cidadania Pequena: fragilidades e desafios do associativismo no Brasil. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2001.
Fernandes, Rubem César - “O que é Terceiro Setor? In: 3 Setor: Desenvolvimento Social Sustentado (org) Ioschpe, E. R. de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
Fernandes, R.C. Privado Porém Público: O Terceiro Setor na América Latina, R. Janeiro: Relume - Dumará, 1994.
Fernandes, R.C. - Elos de Uma Cidadania Planetária. Revista de Ciências Sociais 28-10/jun/1995.
Oliveira, F. A questão do Estado: Vulnerabilidade Social e Carência de Direitos- CNAS. Cadernos ABONG, out.1995.
Petras, J. Intelectuais: uma crítica marxista aos pós-marxistas Revista Lutas Sociais n.1 - 2 semestre, p.1-27, São Paulo: Xamã, 1996.
Petras, J. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa. Blumenau - Santa Catarina: FURB, 1999.
Sartre, Jean – Paul Sartre no Brasil a conferência de Araraquara São Paulo: UNESP, 1986
Kurz, R. Para além do Estado e do mercado e Torpor do Capitalismo In: Os últimos combates, R. Janeiro. Vozes, 1997.